quarta-feira, 9 de outubro de 2013

RESENHA PARCIAL DO LIVRO "A IDEIA DE CULTURA" DE TERRY EANGLETON

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EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. Trad. Sandra Castello Branco. São Paulo: UNESP, 2005.
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Fábio Coimbra
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Mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão
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Penso que a pertinência da pergunta “o que é?” não está simplesmente na precisão da resposta pelo que se pergunta, mas, antes de tudo, no favorecer do escavamento das categorias de discursos envolvidas na construção da resposta e desenvolvidas a partir de determinadas metodologias. Assim, a pergunta “o que é cultura?”, por exemplo, é uma questão complexa, haja vista pressupor – para a consistência da resposta – uma ampla visão de mundo, bem como a precisão de um método que permita enveredar diversos caminhos sem prejuízo do objetivo a que se pretende alcançar.
No contexto dos modernos discursos culturais, A ideia de cultura, de Terry Eagleton, é um livro instigante e, sem dúvida, de tamanha magnitude nos debates contemporâneos a propósito da cultura. Terry Eagleton é um autor iluminado pela precisão no uso que faz de um método que lhe permite abordar, em perspectiva ampla, o conceito de cultura percorrendo um longo caminho que vai da origem do conceito às suas atuais configurações. Pela grandeza, extensão e profundidade de sua análise, o seu método tem a propriedade de perpassar as categorias de temporalidade e historicidade. No que diz respeito à temporalidade, Eagleton trabalha o conceito de cultura a partir de três categorias de tempo, quais sejam: tradicional, moderno e pós-moderno. Já em se tratando da categoria de historicidade, sua análise tem a propriedade de perpassar as épocas, não se prendendo a uma em específico. Nesse contexto, Eagleton mostra ainda como – a partir da origem – se deu a evolução do conceito e como ele foi ganhando diversas significações, tais como “lavoura ou cultivo agrícola” (p. 90); “civilidade e civilização” (p. 19); “erudição – pessoas cultas são pessoas que tem cultura...” (p. 29); “modo de vida e criação artística” (p. 35), dentre outras.
De acordo com Eagleton, no primeiro capítulo da obra,


A palavra cultura mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana. Mas essa mudança semântica é paradoxal: são os habitantes urbanos que são ‘cultos’ e aqueles que vivem realmente lavrando o solo não o são. (p. 10).


À primeira vista, o autor parece menosprezar a ideia de cultura como cultivo agrícola (em alusão á etimologia do termo), como se tivesse querendo, com isso, mostrar seu caráter negativo. Entretanto, cumpre ressaltar que, quando Eagleton argumenta que os habitantes da cidade é que são civilizados, ele está, na verdade, falando de uma ideia de cultura em específico, que é a ideia de cultura como civilização, ou como erudição, que – no contexto de uma divisão binária entre uma coisa e outra – seria o oposto da ideia de cultura como “cultivo agrícola”, ligada, portanto, ao campo, efetivando-se através de uma atividade estritamente material. Cultura como civilização, ou erudição, passa a fazer parte da atividade do espírito de um povo que não se relaciona diretamente com a atividade da terra. Cultura como civilização seria uma prerrogativa daqueles que têm tempo para se instruir. A esse propósito, Eagleton refere que “aqueles que cultivam a terra são menos capazes de cultivar a si mesmos, [pois] a agricultura não deixa lugar para a cultura”. (p. 10).
A propósito de cultura como cultivo agrícola, Eagleton argumenta:


Se cultura significa cultivo, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção realista já que implica a existência de uma natureza ou matéria prima além de nós; mas, tem também uma dimensão “construtivista” já que essa matéria prima precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. (p. 11)


No contexto da passagem acima descrita, Eagleton direciona sua reflexão para a relação entre cultura (atrelada à natureza) e civilização (atrelada a uma atividade humana e, portanto, artificial). Especificamente, trata-se, então, do exame dos modos pelos quais se dá essa relação. Para Eagleton, assim como o homem age sobre a natureza modificando-a, esta também tem a propriedade de agir sobre ele. Assim, a primeira conclusão de Eagleton é a de que essa relação é uma relação dialética: o mundo, ou natureza, age sobre o homem, que age sobre a natureza, ou mundo. Nesse contexto, percebe-se haver o estabelecimento de certa continuidade entre o homem e o ambiente, como o próprio Eagleton sugere: “se somos seres culturais, também somos parte da natureza que trabalhamos. Com efeito, faz parte do que caracteriza a palavra natureza o lembrar-nos da continuidade entre nós mesmos e nosso ambiente”. (p. 15). Em se tratando dos modos como humanamente interferimos na dinâmica do mundo natural, Eagleton suscita a hipótese de que “os meios culturais que usamos para transformar a natureza são eles próprios derivados dela” (p. 11). Nesse contexto, referencia Políxenes em Um conto de inverno, de Shakespeare onde se lê: “todavia, não é a natureza aprimorada por meio algum senão por um meio por ela própria feito”. (p. 11). Nesse sentido, a tese defendida pelo autor aqui requerido é a de que a cultura como, como ele diz, “é vista como o meio de autorenovação constante da natureza”. (p. 12). A cultura é, portanto, o meio através do qual a natureza se autorenova. Nesse contexto, Eagleton chama a atenção para o fato de que o cultural é também o que podemos modificar. Trata-se, então, de conceber o cultural como uma construção. Todavia, como sugere Eagleton, “o cultura é o que podemos mudar, mas o material a ser alterado tem sua própria existência autônoma”. (p. 13). Há, portanto, uma transfiguração da natureza por parte da cultura, embora nesse processo a natureza, como diz Eagleton, coloque limites rigorosos. E, assim, defende que “a própria palavra cultura compreende uma tensão entre fazer e ser feito”. (p. 14).
Ao fim e ao cabo, o que Eagleton vai defender é que


A ideia de cultura significa uma dupla recusa: do determinismo orgânico, por um lado, e da autonomia do espirito por outro. É uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo contra o primeiro que existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa biologia e no ambiente natural. (p. 14).


Em termos da discussão inicial sobre o debate cultural, significa isso que ainda não há um conceito de cultura definido. O que há, até aqui, a penas uma leve explicação de que, em sua totalidade, cultura não é uma atividade material puramente ligada ao solo, nem também uma atividade situada exclusivamente no âmbito do espírito. Ou seja, não é apenas cultivo agrícola, como também não é apenas erudição. Sendo assim, então, qual seria a ideia de cultura de Terry Eagleton?
Objetivando a construção de uma ideia de cultura que não se prenda nem ao determinismo orgânico, nem à autonomia do espírito, Eagleton situa sua investigação em outro patamar de reflexão. Assim, diz El:


Há outro sentido em que a palavra “cultura” está voltada para duas direções opostas. Ela sugere uma divisão dentro do “eu”: entre aquela parte de nós que se cultiva e refina e aquilo dentro de nós que constitui a matéria própria desse refinamento. (p. 15).


Aqui Eagleton introduz uma novidade no seio de sua reflexão: trata-se da conceituação da natureza como matéria constitutiva do “eu”. A esse propósito, a sua tese é a de que “natureza significa tanto o que há em nossa volta como o que está dentro de nós, e os impulsos destrutivos internos podem ser comparados às forças anárquicas externas”. (p. 15). Portanto, é tese dialética de Eagleton a inextricabilidade entre o homem e o ambiente ao seu entorno: o ser humano é uma continuidade da natureza que é uma continuidade do ser humano. Para Eagleton, o que nos assemelha à natureza é o fato de que “como ela, temos de ser moldados à força”. Entretanto, ressalva ele, “diferimos dela uma vez que podemos fazer isso a nós mesmos, introduzindo assim no mundo um grau de reflexividade que o resto da natureza não pode aspirar”. (p. 15).
A propósito da necessidade de sermos moldados à força, que muitas vezes – a título de hipótese – decorre da complexidade dos nossos próprios impulsos destrutivos internos, Eagleton faz uma breve reflexão sobre a politica. Ele argumenta que, “numa sociedade civil, os indivíduos vivem em estado de antagonismo crônico, impelidos por interesses opostos”. (p. 16). E assim, defende a tese de que, em meio a esse impasse, “o estado é aquele âmbito transcendente no qual essas divisões podem ser harmoniosamente reconciliadas”. (p. 16).
No século XVIII, de acordo com Eagleton, houve uma viragem no pensamento cultural e, nesse contexto, “a palavra cultura torna-se sinônimo de civilização”. (p. 19). Como sinônimo de civilização, diz ele:


Cultura pertencia ao espírito geral do iluminismo. Civilização era, em grande parte, uma noção francesa – supunha-se que os franceses tivessem o monopólio de ser civilizados – e nomeava tanto o processo de refinamento social, como o telos utópico rumo ao qual se estava desenvolvendo. [...] a civilização minizava as diferenças nacionais, ao passo que a culturas as realçava. (p. 20).


Percebe-se haver, portanto, uma tensão entre cultura e civilização. Para Eagleton, essa tensão “teve relação muito forte com a rivalidade entre Alemanha e França”. (p. 20). Em razão disso – argumenta-se, a título de hipótese –, “por volta da virada do século XIX cultura começa a deixar de ser sinônimo de civilização para vir a ser o seu antônimo”. (p. 20). A esse propósito, a tese de Eagleton é a de que “uma razão para a emergência de cultura é o fato de que ‘civilização’ começa a soar de modo cada vez menos plausível”. (p. 22). Ele destaca ainda – e esse é um ponto de destaque em sua reflexão – que “o conflito entre cultura e civilização fazia parte de uma intensa querela entre tradição e modernidade.” (p. 23). A tradição e a modernidade são duas categorias fundamentais, cuja compreensão de como se dá a relação entre elas se torna chave para a compreensão da relação entre cultura e civilização.
Em razão dessa tensão no meio cultural, Eagleton refere que “o conceito de cultura que cria raízes no século XIX é o conceito de cultura pluralizado, isto é, falando das culturas de diferentes nações, bem como de diferentes culturas dentro da própria nação”. (p. 25). Houve no contexto do século XIX, portanto, um salto no pensamento cultural de uma perspectiva singular (onde se pensava a cultura como sendo isso ou aquilo) para uma perspectiva pluralizada (onde se pensa a cultura agora como uma mescla de diversidades). Em sendo assim, Eagleton defende a tese de que “todas as culturas estão envolvidas umas com as outras; nenhuma é isolada e pura, todas são hibridas”. (p. 28).
No segundo capitulo, “Cultura em crise”, Eagleton passa a considerar a cultura em duas perspectivas: a antropológica e a estética. Ele defende que estamos presos entre esses dois modelos, sendo essa a tese do livro, como ele bem refere:


Minha tese neste livro é que estamos presos, no momento, entre uma noção de cultura debilitadamente ampla e outra desconfortavelmente rígida, e que nossa necessidade mais urgente nessa área é ir além de ambos. (p. 51-52)


Após apresentar a tese do livro, Eagleton referencia outros autores, mostrando as contribuições de cada um nesse debate, como, por exemplo, Raymond Willians que, segundo Eagleton, “vê o alcance de uma cultura como geralmente proporcional à área de disseminação de uma linguagem, em vez da área de uma classe”. (p. 52). Com Willians, nessa perspectiva, a cultura atrela-se à linguagem. Outro autor referenciado é Clifford Geertz. De acordo com Eagleton, Geetz “vê a cultura como as redes de significação nas quais está suspensa a humanidade”. (p. 53). A esse proposito, “Raymond Willians escreve sobre a cultura como ‘o sistema significante através do qual uma ordem social é comunicada, reproduzida, experienciada e explorada’”. (p. 53). Assim, Eagleton refere que “a cultura pode ser aproximadamente resumida como o complexo de valores, costumes, crenças e práticas que constituem o modo de vida de um grupo específico”. (p. 54). Trata-se de conceber a cultura em um plano mais amplo, o que evidentemente alarga o horizonte de debate, na medida em que se toca em outros ramos de debate como, por exemplo, a ética e a moral.
Outro autor cujas contribuições aqui vêm à luz é Stuart Hall que, de acordo com Eagleton, “propõe uma concepção de cultura igualmente generosa, como as ‘práticas vividas’ ou ideologias práticas que capacitam uma sociedade, grupo ou classe a experimentar, definir, interpretar e dar sentido as suas condições de existências”. (p. 55). Cultura, nessa perspectiva, resulta das experiências feitas com o mundo, ou a própria sociedade. Nesse sentido, Eagleton argumenta que “a cultura, de outro ponto de vista, é o conhecimento implícito do mundo pelo qual as pessoas negociam maneiras apropriadas de agir em contextos específicos”. (p. 55). É, portanto, nesse sentido que Eagleton defende que as “pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração” só fazem cultura, ou ainda, constituem uma cultura “somente quando começam a compartilhar modos de falar, saber comum, modos de proceder, sistemas de valor, uma alto imagem coletiva”. (p. 59).
Outro ponto relevante no pensamento de Eagleton é o tratamento que ele da à cultura enquanto sujeito universal. Assim, refere:


Como forma de sujeito universal, ela [cultura] designava aqueles valores que compartilhávamos simplesmente em virtude de nossa humanidade comum. [...] ao ler, ou ver ou escutar, nós deixávamos em suspenso nossos eus empíricos, com todas as suas contingências sociais, sexuais e étnicas, e dessa forma nos tornávamos nós mesmos sujeitos universais. (p. 60).


Portanto, em razão dessa suspensão dos eus quando estavam juntos os indivíduos, é que se falava de cultura enquanto categoria universal. Todavia, como Eagleton mostra, houve nos anos 60 outra viragem cultural. Nesse contexto, “a palavra “cultura” foi girando sobre seu eixo até significar quase exatamente o oposto. Ela agora significa a afirmação de uma identidade específica – nacional, sexual, étnica, regional –, em vez da transcendência desta”. (p. 60).
Assim, pode-se dizer que houve nos anos 60, portanto, um retorno à perspectiva singular de cultura do período que antecedeu o século XIX, quando se erigiu um conceito de cultura pluralizado. A esse propósito, Eagleton refere que nos tempos mais modernos, “ela [cultura] se tornou superespecializada, refletindo obedientemente a fragmentação da vida moderna em vez de procurar concertá-la”. (p. 59).
A nosso ver, a grandeza das ideias de Eagleton está na precisão da análise que faz a propósito da cultura. Apesar da extensão da reflexão, Eagleton tem a propriedade de ser um autor conciso no que escreveu. A pertinência de suas ideias – cremos – se expressa por meio da sua consistência num debate onde o autor usa de muita precisão na exposição do seu discurso.
Para terminar, acreditamos que as ideias de Eagleton ainda constituem, sem dúvida, um campo riquíssimo nos debates contemporâneos a propósito da cultura, bem como uma fonte a ser explorada na busca de soluções para os problemas culturais que ainda se fazem presentes no contexto do mundo moderno.  

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