sexta-feira, 2 de novembro de 2012

DIREITO E LEI NA FILOSOFIA CIVIL DE HOBBES



Na filosofia de Hobbes, entender com evidência a sua teoria do contrato requer, sobretudo, um prévio esclarecimento de alguns conceitos tais como direito, lei e liberdade. 
         
Por liberdade entende-se [...] a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer. [...] o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas.[1]

Não tendo impedimentos externos, no primeiro estágio os homens viviam com liberdade e direitos ilimitados. Como a condição de guerra ai se fazia presente, logo a expectativa de vida se mostrava abaixo da linha daquela que era autorizada pela natureza.
Já que sob tais condições não se podia viver por muito tempo, o surgimento daquela que Hobbes identificou como “primeira lei de natureza”, alicerçada na paz, se tornou crucial para o prolongamento da vida. Êi-la, portanto: “que todo homem deve esforçar-se pela paz na medida na medida em que tenha a esperança de encontrá-la” [2]. Essa, que foi a primeira lei de natureza, resume-se com mais precisão na seguinte formula: “procurar a paz e segui-la” [3].
A paz seria, portanto, o elemento que tornaria o contrato possível na medida em que, gradativamente, fosse sendo suprimido o estado de guerra. No entanto, em tal estado, isso se apresenta apenas como uma possibilidade e não como algo já dado e acabado. É, pois, preciso concretizá-la passo a passo na medida em que as circunstâncias vão concorrendo para esse fim. O que vai, de fato, determinar o reino da paz e a sua continuidade é justamente o esforço de cada um na busca por esse objetivo. Caso esse empreendimento (que visa o alcance de um bem comum a que se pode chamar de harmonia) falhe, então, “procurar-se-á e usar-se-á, por via disso, todas as ajudas e vantagens da guerra.” [4]

Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva esta segunda lei: que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros permite em relação a si mesmo. [5]

Essa segunda lei, por sua vez, sob a ótica daquilo que se nos aparece ser, vem a tona como mais complexa, haja vista, introduz a noção de renuncia da liberdade. Nesse contexto o assunto configura uma nova dimensão sem escapar do seu foco.
Para uma visão concisa do que se segue, faz-se necessário uma distinção pormenorizada de dois termos, a saber: renuncia e transferência, no entanto, em matéria de direito e liberdade.
Por renuncia, no pensamento de Hobbes, deve-se entender aquele ato pelo qual um indivíduo se desfaz, ou ainda, abre mão de um referido direito sem, no entanto, ter ciência do destinatário final do beneficio a que isso irá gerar. Já a transferência consiste naquele ato pelo qual se busca beneficiar diretamente uma pessoa. Tanto a renúncia, quanto a transferência são, de certa razão, uma maneira de se despojar de algo, por parte daquele que recorre a tais atitudes.  A grande diferença parece residir, portanto, no fim que se atribui a isso.
Em se tratando do direito, que aqui se traduz em liberdade, é preciso destacar que no estado de natureza não há uma coisa sequer a que o homem, por natureza, não tenha direito. É, destarte, por essa ilimitação de direito que se inicia a condição de guerra (dado que o desejo de um indivíduo de possuir uma determinada coisa pode coincidir com a de outrem ao uso dessa mesma coisa e ao mesmo tempo). Logo, para que um conflito não se inicie torna-se necessário que ambos cheguem a um acordo. É por meio desse acordo, dada a sua legitimidade, que um princípio de paz se torna possível.
Para fins de esclarecimento do que acima fora referido, considera-se o seguinte: se um indivíduo faz uso primeiro daquilo a que o direito do outro também abrange, deve reconhecer que esse outro também tem o direito de usar essa mesma coisa dada a sua máxima necessidade. Ou seja, se dois indivíduos tem o direito ao uso de um determinado bem e dele necessitam de forma incondicional sem, no entanto, podê-lo usar simultaneamente torna-se necessário que haja uma alternância quanto ao uso dessa coisa. Assim: o primeiro que usa não se esquecendo do direito do outro de usufrui também, por algum momento cessa seu usufruto e transfere esse direito de uso ao outro para que igualmente usufrua. Esse, o mesmo que aquele, vice-versa e continuamente. É a essa transferência mútua de direito que na filosofia de Hobbes se entende por contrato.
O contrato é, portanto, aquele ato instituído a partir da liberdade de cada indivíduo objetivando, sobretudo, a formação de um poder comum que preze tanto pela permanência do respeito entre todos como também pela continuidade e segurança da própria vida.
Em suma, o contrato é geral e o seu objeto é a transferência de direito. Dependendo de como essa transferência se processa, o contrato – em Hobbes – pode assumir formas diversificadas de ser. Essas são como que características particulares e assumem nomes tais como pacto, observância da promessa, dádiva dentre outros.
O contrato se chama pacto quando um dos contratantes toma a iniciativa de entregar a coisa contratada detendo apenas a confiança de que na posterioridade o outro também faça o mesmo pelo cumprimento da sua parte. Já a observância consiste no ato de se contratar no presente para se cumprir no futuro, isto por parte de ambos os lados. O contrato se chama dádiva, portanto, quando “a transferência não é mútua e uma das partes transfere na esperança de assim conquistar a amizade ou o serviço de um outro.” [6]
Em tese, o que vai garantir o procedimento do pacto é a presença de um poder comum que se origina a partir do contrato. Esse poder tem como elemento primordial a coação que, embora imponha o medo, tem como função primeira garantir o cumprimento do contrato que foi criado entre dois seres distintos. Isso se da, sobretudo em razão da fragilidade da força da palavra em cuja originalidade não há elementos suficientes para frear a ambição que perpassa a responsabilidade e o respeito.
Nessa perspectiva, a grandeza do poder erigido mediante o contrato residiria, portanto, no fato dele obstar a ruptura do pacto garantindo assim o seu cumprimento e a sua linearidade.


REFERÊNCIA
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nilza da Silva. Ed. 3ª. São Paulo: Abril Cultura, 1983. (coleção Os pensadores)



[1] HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nilza da Silva. Ed. 3ª. São Paulo: Abril Cultura, 1983. p. 78.
[2] Idem, p. 78
[3] Idem, p. 78.
[4] Idem, p. 78.
[5] Idem, p. 79.
[6] Idem, p. 80

ECONOMIA RACIONAL EM PAUL RICOEUR



Atrelada ao estado aparece a reflexão ricoeuriana com ênfase na economia, também em âmbito racional universal. Um aspecto importante de ser notado no que tange ao assunto diz respeito ao fato de que no meio econômico também há toda uma preocupação por buscar instrumentos que de algum modo contribuam para a sua universalização. Com exemplo pode-se citar as técnicas de manutenção e regularização dos mercados. Nesse sentido, Ricoeur refere que

Pode-se falar de uma única ciência e de uma técnica econômica de caráter internacional integrada em finalidades econômicas diferentes e que, ao mesmo passo, criam de bom ou malgrado fenômenos de convergência, cujos efeitos parecem, de fato, inelutáveis. [1]

 Assim como os instrumentos, que são redimensionados pela técnica, a economia também não possui uma pátria definida. Isso decorre justamente do fato dela ser parte da atividade humana em caráter mundial. Um exemplo disso pode ser observado sempre que uma bolsa de valor tende a cair bruscamente. Os efeitos logo são sentidos no mundo todo. Para constatar isso, basta lembrar a quebra da bolsa de nova Iorque em 1929 que pôs o mundo em crise. De todos os fenômenos da globalização, talvez esse (econômico) seja aquele que melhor se percebe e que com mais intensidade se sente os seus efeitos, dadas as suas alterações. Talvez seja também aquele que com mais eficiência interliga os habitantes de todo o mundo numa conexão indissolúvel. Diante do fenômeno da mundialização é que Ricoeur diz que “a universalidade de origem e de caráter cientifico colore finalmente de racionalidade todas as técnicas humanas” [2]. Ou seja, nada escapa a esse processo, ele abrange tudo e universaliza tudo. Impõem sobre todo o mundo as mesmas necessidades. Tudo isso só possível por causa da técnica que se deu em graus variados.

E estas não são apenas técnicas de produção, mas também de transporte, de relações, de bem-estar, de lazer, de informação; poder-se-ia falar de técnicas de cultura elementar mais precisamente de cultura de consumo de caráter mundial que elabora um gênero de vida de caráter universal. [3]  

Essa é, portanto, a civilização mundial; algumas de suas características; algumas de suas procedências e alguns de seus efeitos. Ela, na verdade, é uma imposição do sistema capitalista que age subjugando os valores humanos e culturais aos seus interesses, tornando-os vulneráveis. Foi ele (capitalismo) que provocou o processo de massificação das sociedades e a própria cultura de massa; que enriqueceu a uns poucos e empobreceu a uns muitos e extinguiu total ou parcialmente diversas culturas.
Questionando o significado dessa civilização, Ricoeur refere que, “pode-se dizer [...] que ela constituiu um progresso verdadeiro [...]. Existe progresso quando são satisfeitas duas condições seguintes: de um lado, um fenômeno de acumulação e, de outro, um fenômeno de melhoramento”.[4] Essa reflexão sobre a acumulação é uma reflexão de destaque não somente em Ricoeur, mas também em autores como, por exemplo, Marx. Comparando esses dois autores, pode-se dizer que há alguma semelhança em seus pensamentos. Um exemplo disso é quando Ricoeur diz que “a transformação dos meios em novo meios constitui o fenômeno da acumulação, o que faz, aliás, com que exista uma história uma história humana” [5]. A semelhança com Marx, neste caso, reside no fato de Marx – em a Ideologia Alemã – defender a idéia de que o homem só faz história depois que ele garante a sua subsistência. A noção de garantia da subsistência, de algum modo, já introduz a noção de acumulação.
Mesmo diante dos impactos sofridos pelas culturas em vista da civilização universal, Ricoeur não teme em dizer que elas também significaram um bem para a humanidade. Esse bem reside, sobretudo, no fato de que elas “representam o acesso das massas da humanidade aos bens elementares”.[6] É a partir daí que Ricoeur chega à conclusão de que “nenhuma espécie de crítica da técnica poderá contrabalançar o benefício absolutamente positivo da libertação da inércia e do acesso em massa ao bem-estar”. [7] Ricoeur, portanto, não é um crítico ferrenho da técnica e do progresso. Todavia, se, por um lado, ele reconhece a importância que ambas tiveram, ou representaram, para a humanidade no decorrer da sua história, por outro, ele igualmente reconhece seu lado negativo.

É, entretanto, de outra parte necessário admitir que tal desenvolvimento apresenta um caráter contrario. Ao mesmo tempo que uma promoção da humanidade constituiu o fenômeno da universalização uma espécie de sutil destruição, não somente das culturas tradicionais, o que talvez não fosse um mal irreparável, mas aquilo que eu chamaria provisoriamente [...] o núcleo criador das grandes civilização, das grandes culturas, esse núcleo a partir do qual interpretamos a vida e que denomino por antecipação,  o núcleo ético e mítico da humanidade.[8]

Ricoeur toma ciência do perigo que a técnica representa no que diz respeito à extinção total ou parcial das culturas, dada a intervenção no núcleo ético e mítico. Essa ameaça decorre, sobretudo, da universalização em face da qual tudo tende a mudar. Desse modo, Ricoeur parece chegar ao cerne do problema. Eis, ai seu questionamento: “Para entrar na via da modernização, será preciso lançar fora o velho passado cultural que tem sido a razão de ser de um povo?”. [9] Essa é, portanto, a grande pergunta e, por conseguinte, o mistério ao qual ele procura desvendar.
Ricoeur parte do princípio de que as culturas podem ser definidas como um conjunto de valores ou valorações, embora seja difícil de entender o significado disso. “Esses valores próprios de um povo, que o constituem como povo, devem ser buscado muito abaixo”. [10] Esse último termo aqui significa as raízes ou origens aonde os valores foram produzidos, ou iniciados. Nesse sentido, ele afirma que “se se quer atingir o núcleo cultural, é preciso escavar até aquelas camadas de imagens e símbolos que constituem as representações básicas de um povo”. [11] Imagens e símbolos, nesse contexto, não dizem respeito somente a utensílios reais, ou materiais que as culturas ou os povos usam para expressar seus costumes e suas práticas, mas também “constituem aquilo que se poderia chamar o sonho em estado de vigília de um grupo histórico”.[12] Ou seja, os anseios, desejos e aspirações, enfim, a utopia de um povo, enquanto marco norteador das suas práticas e de seus valores culturais. Daí, conclui Ricoeur, “é nesse sentido que falo do núcleo ético-mítico que constitui o fundo cultural de um povo”.[13]
No escrito sobre o qual este artigo discorre, Ricoeur faz ainda inúmeras considerações sobre as culturas. Entretanto, não serão enfatizadas neta investigação. Para isso, seria necessário outro trabalho mais amplo, pois, a continuidade aqui extrapolaria os limites deste.   

REFERÊNCIA 
RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968.



[1] RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968. p. 280.
[2] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[3] Cf. Id. Ibidem, p. 280.
[4] Cf. Id. Ibidem, p. 281
[5] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[6] Cf. Id. Ibidem, p. 281.
[7] Cf. Id. Ibidem, p. 282.
[8] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[9] Cf. Id. Ibidem, p. 283.
[10] Cf. Id. Ibidem, p. 285.
[11] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[12] Cf. Id. Ibidem, p. 287.
[13] Cf. Id. Ibidem, p. 287.

POLÍTICA RACIONAL EM PAUL RICOEUR



Um ponto relevante quanto a isso, são as reflexões de Ricoeur sobre a política em seu aspecto racional, onde ele centra seu raciocínio no Estado moderno tomando como base o filósofo alemão Hegel, especificamente a obra intitulada “Princípio da filosofia do direito”. Nesse sentido, sua preocupação gira em da torno da  racionalidade e da universalidade do Estado. Desse modo, ele refere que

O primeiro filósofo a haver refletido sobre essa forma de universalidade foi Hegel nos Princípios da filosofia do direito. Foi Hegel o primeiro a mostrar que um dos aspectos da racionalidade do homem e ao mesmo tempo um dos aspectos de sua universalidade, e o desenvolvimento de um estado que põe um jogo um direito e desenvolve meios de execução sob a forma de uma administração. [1]

Na visão de Hegel, o estado aparece também como um fator de racionalização e universalização do sujeito humano. E isso se dá, sobretudo, pelo fato dos estados possuírem algo, ou pontos em comum.

Nós os vemos todos evoluírem inelutavelmente desde que se atinjam certas etapas de bem- estar, instrução e cultura [...]; vemo-los todos à procura de um equilíbrio entre as necessidades de concentrar, e mesmo de personalizar o poder, a fim de tornar possível a decisão, e por outro lado a necessidade de organizar a discussão a fim de fazer com o que o maior número de cidadão participe dessa decisão. [2]

Essas características comuns dos estados são como que uma rede de integração dos indivíduos a um sistema que se torna mundial na medida em que eles (os estados) apresentam preocupações e passam a buscar objetivos semelhantes. Para mostrar outros traços característicos desse fenômeno, Ricoeur refere que

[...] nos achamos em face de um estado puro e simples, de um estado moderno, quando vemos o poder capaz de estabelecer uma função pública, um corpo de funcionários que preparam as decisões e que as executam sem ser pessoalmente responsáveis pela decisão política. Eis ai um aspecto racional da política concernente agora absolutamente a todos os povos do mundo, a ponto de constituir um dos critérios mais decisivos da ascensão de um estado à cena mundial. [3]

Com a mundialização há, portanto, um compartilhamento das atividades, que antes estava a cargo de uma só pessoa ou de um pequeno grupo.
Um aspecto importante da política moderna, que cabe destacar, diz respeito à questão referente ao poder e a força. A força é justamente aquilo que leva os indivíduos ao cumprimento do dever quando eles se recusam a cumpri-los. Nessa perspectiva, o estado é, então, esse ser que coage a liberdade do sujeito. Desse modo, promove certo ajustamento dos indivíduos à ordem social estabelecida, em se tratando do cumprimento, ou das responsabilidades para com as obrigações.

REFERÊNCIA


[1] RICOEUR, Paul. História e verdade. Trad. F. A. Ribeiro. Rios de Janeiro: Forense, 1968. p. 279.
[2] Cf. Id. Ibidem, P. 279.
[3] Cf. Id. Ibidem, P. 280.

HERMENÊUTICA: DA GÊNESE À REFORMA PROTESTANTE



RESUMO

O intuito deste artigo é fazer uma abordagem histórica da Hermenêutica estendendo-se dos gregos com sua maneira própria de interpretação, até o período no qual veio a lume a reforma protestante. Nesta pesquisa ilustraremos como se deu o processo evolutivo da Hermenêutica dentro daquilo que constitui a proposta do tema. Para isso, partir-se-á do princípio de que a Hermenêutica realmente diz respeito à arte de interpretar. Como objetivo geral, tem-se, portanto, a busca pela compreensão da Hermenêutica fazendo uma viagem histórica mergulhando no seu passado para insurgir-se no seu presente. Como objetivo específico tem-se a proposta de analisá-la a partir de diversos ângulos e pontos de vista diferente que, simultaneamente se interpenetram formando um todo que visualiza o mesmo alvo.

Palavras-chaves: Hermenêutica – Linguagem – pensamento – Renascimento

  1. INTRODUÇÃO                                                              
O trabalho a ser desenvolvido aborda como tema: Hermenêutica: da gênese à reforma protestante. Este artigo tem como proposta, a partir de uma reflexão histórica, demonstrar como se deu o processo de evolução da hermenêutica num recinto de mutação constante passando por tumultuosas situações até ascender a um nível de aperfeiçoamento tal como se observa hoje. Como formas de enriquecimento desta pesquisa serão analisadas sucintamente obras e autores diversos, de relevância fundamental para o progresso desta investigação. Um desses autores, excelentemente renomado, é o alemão Schileiermarcher.
Este trabalho não tem como escopo exaurir todos os conhecimentos concernentes à hermenêutica em sua totalidade, haja vista a extensão e complexidade do assunto, mas quer sim dar um passo fundamental rumo a essa direção.

2. HERMENÊUTICA: INTERPRETAÇÃO DO SENTIDO DAS PALAVRAS E LINGUAGEM

Tradicionalmente, a hermenêutica foi pensada e definida como a arte da interpretação, o que não estava longe de ser uma verdade. Entretanto, para fins de esclarecimento se tornam importantes, aqui, alguns questionamentos que – como convites à reflexão – ganham pertinência à evolução da pesquisa à medida que contribuem para a cogitação a cerca da temática proposta. Sendo assim, poder-se-á levantar as seguintes indagações: o que de fato vem a ser a Hermenêutica? Como se faz uma interpretação? O que se deve levar em conta no ato de interpretar? O que define a Hermenêutica de hoje em relação a do passado?

Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significa de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido verdadeiro de uma expressão; extrair de frase, sentença ou norma tudo o que na mesma se contem. Pode-se procurar e definir a significação de conceitos e intenções, fatos e indícios; porque tudo se interpreta; inclusive o silencio. [1]

O intérprete é, portanto, aquele que deve ter total afinidade com a coisa interpretada; que detém sólidos conhecimentos da língua a que interpreta, bem como intimidade com as pessoas de cujos gestos e ações, por ele, são esclarecidos. Outra exigência do intérprete (em se tratando de Hermenêutica) é a de que ele saiba reproduzir aquilo que passou do interior para o exterior; o que isso significa; que valor comporta etc. Tudo isso já é suficiente para mostrar que a função de intérprete não é tão simples, como de repente se possa imaginar. Nesse sentido a Hermenêutica se torna complexa, e a aplicação de regras para determinar o sentido correto das coisas interpretadas, faz-se necessário para que haja harmonia e logicidade. Caso contrário, a diversidade de interpretação sem um segmento lógico poderá facilmente conduzir ao caos, o que conseqüentemente, levará a um distanciamento do verdadeiro sentido e originalidade do objeto interpretado. “O interprete é o renovador inteligente e cauto e o seu trabalho rejuvenesce e fecunda a formula prematuramente decrépita.”[2]
Não se pode concluir como errônea a opinião daqueles que professam que a hermenêutica é, de fato, a arte da interpretação, e, sobretudo, da interpretação do sentido das palavras. Em geral, a razão pela entende-se a hermenêutica como arte de interpretar é histórica, tendo o seu início com os gregos, especialmente a partir da mitologia.

O termo Hermenêutica provem do grego Hemeneuein, que significa declarar, anunciar, interpretar ou traduzir [...] não é improvável que a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, o que daria ao termo uma dimensão sagrada na medida em que o relacionava com a compreensão da palavra divina.[3]

Observa-se, portanto, que na raiz da Hermenêutica já está implicada a concepção do divino e, desse modo, sua ligação com os textos sagrados. O mensageiro, como é sabido, é aquele que traz ou leva uma mensagem de um ser para outro. Assim Hermes só poderia transmitir a mensagem dos deuses por meio do dizer. Daí se concebe que o mensageiro, além de condutor da mensagem, é também aquele que faz uso da fala a fim de transmitir aquilo que ouviu. O problema que aqui vem à tona consiste em saber se, de fato, há entendimento ou não por parte daqueles que são o destinatário da mensagem. Considerando que nem sempre se entende ao que se houve falar, surge então a necessidade da explicação daquilo que é dito para que todos tomem conhecimento claro do que ouvem.  Levando em conta a diversidade lingüista, bem como a própria distinção dos homens entre si no que diz respeito ao conhecimento e, por conseguinte, à cultura intelectual, de modo que enquanto alguns gozam de muito entendimento, outros gozam de pouco, a grande questão que se coloca é a necessidade da tradução da mensagem do original para as particularidades a fim de favorecer a assimilação e o entendimento. Nesse sentido, o mensageiro é, portanto, aquele encarregado de uma tripla função: anunciar, explicar e traduzir.

Hermes seria então aquele que trazia uma <<mensagem>> o que nos remete para três usos possíveis da noção de Hermenêutica: o dizer, o explicar e o traduzir [...] Nos três casos há algo de diferente, de estranho e de separado no tempo, no espaço ou na experiência, que se torna familiar, presente e compreensível; há algo que requer representação, explicação ou tradução e que é, de certo modo, tornado compreensível, interpretado.[4]

Desse modo, percebe-se que a função anunciadora de Hermes é uma função dotada de carências e necessidades, cuja supressão se torna condição necessária indispensável para o surgimento da hermenêutica. A primeira dessas necessidades cabe ressaltar, é a da linguagem oral, passível de percepção, sobretudo, nas sagradas escrituras onde a voz alta se tona fundamental para o ouvinte.
Que, em princípio, a Hermenêutica estava voltada à compreensão e interpretação das sagras escrituras, ninguém disso pode duvidar. Pode se pensar até mesmo que ela nasce justamente com essa proposta na medida em que a mensagem dos desuses precisava de um interprete. Não obstante, a evolução dos acontecimentos no decorrer da história foi aos poucos impondo algumas mudanças necessárias. Desse modo, a Hermenêutica, comungando dessas mudanças, vai gradativamente se transformando na medida em que essa transformação se fazia necessária. Sendo assim, uma das primeiras mutações ocorridas na Hermenêutica foi sofrida no que diz respeito à semântica.

O termo compreensão começou ele mesmo a ser encarado como um problema que interessava resolve, a ponto da questão não se colocar apenas em relação à das escrituras, ou de outros textos, mas havendo antes a necessidade de elucidar o que era compreender na sua essência, isto é, as condições e os limites em que este se exercia.[5] 


Ou seja, diante dos problemas ou dificuldades que surgiram, parecia haver certa mudança no sentido do caráter inicial. Aqui parece desencadear-se, portanto, um processo de orientação filológica, onde a preocupação se volta para um estudo semântico e lingüístico. Ora se essa orientação da Hermenêutica para a filologia se deu, especialmente, a partir da necessidade de uma compreensão semântica dos termos ou das palavras no contexto de sua determinada origem, ou língua, “vai ser, então, a partir da evolução e disseminação do cristianismo que essas transformações vão se desenvolver e se alterar levando em conta, sobretudo, a necessidade de conciliação do antigo com o novo testamento. Aqui é importante chamar a atenção para o fato de que entre o antigo e o novo testamento há um abismo muito grande no que diz respeito à linguagem. Enquanto a linguagem do novo testamento, por si mesma, está mais próxima da compreensão por ser uma linguagem, diga-se de passagem, menos enigmática, a do antigo testamento na medida em que consta de metáforas em demasia dificulta a compreensão, sobretudo quando não se tem nenhuma certeza de muitos acontecimentos que metaforicamente estão relatados. No período patrístico, com Santo Agostinho, doutor da igreja, surge a hermenêutica cristã, que se tornou fundamental em toda a idade media.[6] Com a restrição da Hermenêutica no campo da teologia, a grande questão que daí deriva consiste essencialmente em saber como se devem compreender corretamente as sagradas escrituras[7]
Diante dessa realidade, no que diz respeito à hermenêutica, entendida enquanto arte de interpretar, a evolução natural dos acontecimentos, da sociedade e da humanidade como no todo, acompanhada pelo progresso das ciências que gradativamente vão ganhando espaço, foi aos poucos fazendo com que aquelas antigas e medievais formas de explicação e interpretação fossem passo a passo enfraquecendo. A continuidade, portanto, desses moldes arcaicos de interpretação já não tinham mais força. Já não se podia mais insistir no pensamento e na continuidade da hermenêutica a partir dos protótipos da antiguidade e, sobretudo, da idade media, pois,

As interpretações durante este período da humanidade foram as mais diversas e absurdas. Tanto judeus quanto cristãos estavam inteiramente envolvidos, cada qual no seu ponto central, logicamente. Após esse período de negro, em que a humanidade permeou a ignorância, onde tudo, ou quase tudo se vinculava ao pensamento divino, surgiram os renascentistas, enfatizando a razão humana em detrimento aos princípios religiosos. [8]

Dada a superação desse momento “turbulento” da antiguidade, surge então o renascimento. Com este, a Hermenêutica é repensada e ganha, portanto, uma nova configuração.
O surgimento da Hermenêutica moderna coincide especialmente com aquele momento da humanidade que teve como pretensão primordial a construção da autonomia do sujeito a partir da elevação da razão (que passa a ser o distintivo fundamental do renascimento) em detrimento da fé (caractere principal do período anterior, ou seja, medieval). Com o renascimento, buscou-se construir um homem mais racional e independente da religião. Cumpre ressaltar que no processo de aquisição da autonomia é necessário que o sujeito enquanto criação se afaste do seu criador, afim de que (enquanto sujeito) tome ciência daquilo que ele, de fato, é. Foi justamente o que aconteceu no renascimento. Esse período marca, destarte, o advento da cultura antropocêntrica.
Nesse momento de desconstrução e reconstrução, de ruptura e linearidade, de descontinuidade e continuidade, o renascimento vai significar o abandono do antigo e a busca pelo novo.[9]    

Sem a velha e conhecida segurança dada pela igreja, e por seus ‘homens’ de Deus, a humanidade procura unicamente a si mesmo, na alto-certeza do sujeito pensante, uma base segura, e um ponto de partida para o conhecimento filosófico. A hermenêutica dessa época preocupa-se com a correta utilização da palavra e da língua.[10]

Se, por um lado, o renascimento favoreceu aos homens tornarem-se autônomos, por outro, introduziu entre eles a necessidade de relação mútua na medida em que eles passam a procurar entre si um “porto seguro” capaz de nortear sues pensamentos, seus conhecimentos e até mesmo suas ações. Isso de algum modo desembocou num problema mais amplo, a saber, o problema da linguagem, ou até mesmo a relação entre ela e o pensamento, uma vez que vai ser somente por meio dela que aquele vai se exteriorizado e, portanto, manifestado. Schileiermarcher, por exemplo, vai mostrar como essa relação se torna inextrincável. Para tanto, ele parte do princípio da relatividade do pensamento, considerando que se o pensamento é relativo, o saber também não escapa a isso. Como a interpretação gramatical “é arte de encontrar o sentido determinado pela linguagem[11]", essa, por sua vez, vai ser a válvula de escape por onde o pensamento se dá a conhecer, desse modo, ela se tornará, por excelência a fonte dessa relatividade. Opondo-se à concepção de que a explicação existe por si mesma, Schileiermarcher compreende que ela (compreensão), na verdade, resulta de uma combinação de pensamentos daqueles que falam com aqueles que escutam. Sendo assim, a compreensão se torna metódica e a aquisição do saber exige, acima de tudo, esforço, cuidado e disciplina.
O problema da linguagem na Hermenêutica tende a se intensificar de modo especial com a reforma protestante que apregoava que “todos os fiéis deveriam ter acesso ao termo escrito em linguagem comum” [12], o que fez com que a hermenêutica se voltasse à questão filológica e lingüística. O objetivo disso era fazer com que o povo pudesse lê e interpretar a sagrada escritura de modo que o sentindo literal e histórico captado pelo autor humano fosse o sentido divino.

A reforma reclama o regresso à verdade do texto, à autenticidade da mensagem divina, bem como a abolição definitiva das adulterações e obstáculos erguidos pela autoridade católico-romana para impedir a comunicação entre os fiéis e Deus.[13]

A reforma, portanto, entendeu que a tradição católica funcionava como uma espécie de bloqueio que impedia o contato entre Deus e os fiéis. Era necessário, portanto, tornar essa passagem livre para todos aqueles que a isso pretendessem. Daí, a liberdade de interpretação. O próprio regresso á verdade do texto, já introduz a noção da necessidade do uso da leitura. Desse modo, a autenticidade da significação passa a ser objeto de busca constante da hermenêutica.

3.  CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como pretensão primeira discorrer a cerca da trajetória histórica da hermenêutica partindo de sua origem – que se deu com os gregos, como, de fato, foi mostrado – e passando pela idade média para alcançar o renascimento.
O intuito primordial era de encerrar a discussão logo que se chegasse ao período renascentista. Entretanto, a diversificação das fontes introduziu alguns conceitos e reflexões que, com o evoluir da pesquisa, tornou-se necessário estendê-la até a reforma protestante. Cumpre ressaltar que esse pequeno prolongamento em nada enfraqueceu a pesquisa, pelo contrário, enriqueceu-a mais ainda.
Uma das reflexões cruciais desta pesquisa convém lembrar, foi aquela que disse respeito à inseparabilidade entre o pensamento e a linguagem, à luz de Schileiermarcher. Ainda em se tratando desse autor, outro ponto relevante foi a noção de que a linguagem constitui a fonte da relatividade do saber, uma vez que ela expressa o pensamento, que também, é relativo.
No que diz respeito à origem, percebeu-se que a hermenêutica nasceu atrelada ao ideal de tradução, explicação e interpretação da mensagem divina. Nesse período e em grande parte da idade media instala-se um caos na medida em que as disputas religiosas entram em cena, como por exemplo, judaísmo e o cristianismo.
Em suma, percebeu-se que com o renascimento a hermenêutica foi reconfigurada e redimensionada, ao mesmo tempo em que surgiram novas exigências, sobretudo, a partir da reforma protestante que, diga-se de passagem, foi herdeira direta do renascimento.     

REFERÊNCIAS

HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001.
<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf>. Acesso em: 04 de maio de 2010.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. (Coleção Pensamento e Filosofia)
PIRES, Maria João. Teologia e o poder da palavra: o desafio renascentista.
SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003.




[1] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 9.
[2] Cf. ibidem, P. 12.
[3] Cf. HELENO, José Manuel Morgado. Hermenêutica e Ontologia em Paul Ricoeur. Porto Alegre: Instituto Piaget, 2001. P. 44-45.
[4] Cf. ibidem, P. 45.
[5] Cf. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984. P. 46.
[6] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[7] Cf. Id. Ibidem, P. 46.
[8] Disponível em: http://www.professorallan.com.br/UserFiles/Arquivo/Artigo/artigo_prof_fabio_sombrio_hermeneutica.pdf
[9] Cf. Idem.
[10] Cf. ibidem.
[11] SCHLEIERMACHER, Friedrich D. E. Hermenêutica: Arte e Técnica da Interpretação. Trad. Celso Reni Braida. Bragança Paulista: Editora universitária São Francisco, 2003. P. 70. Outras reflexões sobre esse autor que aqui não aparecem com referência foram extraídas de fichamento de conteúdos assimilados em sala de aula.
[12] Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2725.pdf
[13] Cf. Ibidem.

SUJEITO E MODERNIDADE: UMA RELAÇÃO EM CONSTANTE TENSÃO




RESUMO

O presente trabalho discute a relação entre sujeito e modernidade a partir da tensão que há entre ambos. Nesse sentido, a pesquisa demonstra que essa tensão se origina, sobretudo, a partir dos ideais sobre os quais a modernidade veio a lume. Esses são os ideais de beleza, pureza, ordem, dentre outros. A partir desses ideais, a modernidade se transforma num obstáculo para a aquisição de algo que naturalmente faz parte da constituição do ser humana, a saber, a liberdade. Buscar-se-á demonstrar que é dessa escassez de liberdade que resulta o mal estar do sujeito moderno. Com a busca da liberdade – que lhe é tolhida gradativamente –, o sujeito entre em conflito com alguns princípios modernos, buscando, de alguma forma, romper com os padrões que, pela modernidade, foram erigidos. A restrição da liberdade do sujeito se dá, especificamente, pelo fato de que a modernidade busca, a ferro e fogo, fazer valer a ordem, que é um dos seus projetos fundamentais.

Palavras-chaves: Modernidade – Sujeito – Mal-estar – Liberdade – Ordem.

ABSTRACT


This article discusses the relationship between subject and modernity from the tension that lies between them. In this sense, the research shows that this tension originates mainly from the ideals on which modernity came to light. These are the ideals of beauty, purity, order, among others. From these ideals, modernity becomes a hindrance to the acquisition of something which of course is part of the constitution of human being, namely, freedom. Search will show that it is this lack of freedom that comes the malaise of the modern subject. With the search for freedom - it is dwarfed gradually - the subject conflict with some modern principles, seeking somehow to break the patterns that, by modernity, were erected. The restriction of freedom of the subject is given specifically by the fact that modernity seeks to fire and sword, to enforce the order, which is one of its key projects.



Keywords: Modernity - Subject - Malaise - Freedom - Order.

  
1.  INTRODUÇÃO

Certamente, falar do homem no contexto da modernidade implica, antes de tudo, reconhecer o que essa modernidade, então, falada, representou para ele, quais as conseqüências que ela lhe trousse e de que maneira ela alterou o cenário da vida cotidiana. Obviamente, o número daqueles que se propuseram a entender a modernidade, ou – diga-se de passagem – o sujeito moderno foi bem amplo. Como exemplo pode-se citar o ilustre Sigmund Freud, quando esse analisa a civilização, que – em algum aspecto – também é sinônimo de modernidade. Alem de Freud, destacam-se também nomes renomados, tais como o poeta e filósofo francês Charles Baudelaire, além de Benjamim, Bauman, Berman, Poe, dentre outros. Sendo assim, o presente trabalho – que visa discorrer sobre o sujeito no contexto da era moderna – tem como propósito refletir sobre as problemáticas que advindas da modernidade recaíram sobre o sujeito obrigando-o a uma série de eventos desagradáveis, tais como, por exemplo, a falta, ou restrição considerada, de sua liberdade em vista da ordem que se deu em excesso.


2.  IMPLICÂNCIAS DA MODERNIDADE PARA O SUJEITO

Em princípio, poder-se-ia dizer que com a modernidade o sujeito já não tem mais como fixar lugares para a sua estadia, dado que o cenário moderno é marcado, sobretudo, por ser um ambiente inconstante onde tudo muda. Essa ausência de capacidade para se fixar em um determinado lugar constitui um dos traços característicos do sujeito moderno. Esse homem que não deixa rastro, e que persegue objetivos específicos, lança-se em busca da felicidade, embora não tenha a plena certeza de que a alcançará. Para isso ele precisará especialmente de liberdade.
Na modernidade, o sujeito é sempre levado a abrir mão de alguma coisa se ele quiser, de fato, atingir outras. Como bem diz Bauman: “você ganha uma coisa, mas, habitualmente perde em troca outra coisa”. [1] Ou seja, na modernidade o sujeito se encontra sempre em estado de tensão, no sentido de não possuir nenhuma certeza de que aquilo que no momento presente lhe pertence, venha a lhe pertencer no momento futuro.
Dado esse caráter da modernidade, tem-se, então, os problemas que, a partir daí, passam a incidir sobre o sujeito. Em sua maioria, esses problemas – como lembra Bauman – vão resultar do excesso de ordem que constantemente é imposta sobre o sujeito da era moderna. A ordem passa a ser, então, um dos elementos centrais sobre o qual a modernidade se debruçará. Essa ordem seria, então, a tentativa de evitar um retorno ao já ultrapassado, a tradição. Desse modo, insistir em retornar significa rebelar-se contra a ordem estabelecida.
Além da ordem, outros ideais tais como, o ideal de beleza e de pureza passou a fazer parte da modernidade como sendo sua característica intrínseca. Ou seja, ordem, beleza e pureza constituem o tripé, ou as bases fundamentais sobres as quais a modernidade se erigiu. Entretanto, é preciso salientar que esses três elementos, embora tenham sido idealizados com o objetivo de harmonizar o ambiente moderno, eles não fazem parte das práticas do homem moderno em caráter linear. Nesse sentido, Bauman refere que

Nada predispõe “naturalmente” os seres humanos a procurar ou preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. (se eles parecem, aqui e ali, apresentar tal “instinto” deve ser uma inclinação criada e adquirida, ensinada, o sinal mais certo de uma civilização em atividade. [...] Os seres humanos precisam ser obrigados a respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a ordem. Sua liberdade de agir sobre seus próprios impulsos deve ser preparada. A coerção é dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos. [2]

Na modernidade, portanto, as ações do sujeito em termos de comportamento parece ser algo pré-determinado. Daí a dedução de que as atitudes decorrentes da harmonia entre a ordem, a beleza e a pureza aparecem resultar diretamente de um processo preparatório para tais ações harmoniosas. Essas atitudes seriam assim os elementos por meio dos quais se tornaria perceptível os traços da modernidade, que também pode ser chamada de civilização. A obediência à ordem, ou a capacidade dos indivíduos para essa ação, passa a ser na modernidade um meio relevante para a construção da vida civilizada. A ordem seria, desse modo, uma via de anulação das coisas que no sujeito podem colocar em perigo a harmonia no mundo moderno como, por exemplo, os próprios instintos que, naturalmente, pulsam no sujeito de modo que ele muitas vezes acaba por ser vencido por essa força que lhe é natural, que vibra no seu ser, mas que ele não sabe como lidar com ela. De açodo com Bauman, “’A civilização se constrói sobre uma renúncia ao extinto’. Especialmente – assim Freud nos diz – a civilização [...] ‘impõe grandes sacrifícios’ à sexualidade e agressividade do homem”.[3] Nesse sentido, é fácil perceber que não há civilização sem que o indivíduo se desfaça – senão de todas – pelo menos de algumas de suas paixões naturais, as quais se chama extinto. Em geral, essa terminologia (extinto) se usa somente para se referir aos animais irracionais. Entretanto, é preciso ressaltar que o fato do homem ser racional, isso não faz com que ele deixe de ser um animal. Na verdade ele pode ser considerado um animal mais evoluído do que os outros.
Uma observação precisa da vida humana, bem como uma observação detalhada de muitos comportamentos do homem, levará o observador a concluir que entre ambos (o animal irracional e o animal racional) há uma série de comportamentos semelhantes. Isso indica, por sua vez, que ambos não estão muito longe um do outro em termos de ação. Sendo assim, o que a modernidade quer é suprimir no sujeito todos os resquícios da irracionalidade, ou da animalidade que nele ainda se fazem presente e que podem de algum modo provocar a ruína da ordem dada numa determinada civilização, qual seja, a moderna. Por isso, ela obriga o sujeito à renúncia dos seus instintos. Essa renuncia é, portanto, a condição fundamental de toda a civilização. Como o instinto é diverso, além do que é algo natural no homem, então, nesse sentido é que é afirmado que a civilização vai impor grandes sacrifícios à sexualidade humana. O que se pode perceber com base no que fora dito é que com a modernidade há toda uma repressão que incide sobre o sujeito, de modo que ele se vê o tempo todo pressionado a renunciar por obrigação a algo que naturalmente ele não renunciaria. Essa pressão que recai sobre o sujeito tira-lhe parte de sua liberdade. Nesse sentido, Bauman diz que “O anseio de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares da civilização ou contra a civilização como num todo”. [4] O sujeito se volta, então, contra a modernidade, ou civilização, e trava com ela uma grande batalha. A razão disso é precisamente a busca da liberdade, o alívio para o cansaço que a vida civilizada lhe ocasiona. O sujeito busca muitas vezes quebrar com o padrão moderno para poder se libertar de uma série de coisas menores que lhes perturbam bastante. Sendo assim, é possível também dizer que o sujeito moderno é aquele que muito raramente goza de plena paz, tanto consigo, quanto com os outros. Uma coisa importante que aqui pode ser ressaltada diz respeito à saúde – tanto física, quanto psíquica – do sujeito moderno. Nesse aspecto, pode-se dizer que ele é um ser frágil, inconstante e inseguro. É um ser com muita tendência a se tornar um depressivo, um neurótico, ou outra coisa qualquer. Tudo isso contribui, indubitavelmente, para que o mal-estar se instale no homem. Todos esses mal-estares, cabe lembra, resultam, dentre outras coisas, do excesso de ordem, tal como já fora tratado. Para corroborar o que fora dito, Bauman refere que

Dessa ordem que era o orgulho da modernidade e a pedra angular de todas as suas outras realizações [...] Freud falou em termos de “compulsão”, “regulação”, “supressão” ou “renuncia fechada”. Esses mal-estares que eram a marca registrada da modernidade resultaram do “excesso de ordem” e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade.[5]

 Daí é que se pode falar de um mal-estar do homem na era moderna, na era da civilização. É possível dizer que a tão desejada ordem, de algum modo, acabou contribuindo para que se estabelecesse um novo caos. Esse, por sua vez, não se dá a perceber de forma direta, pois é como que invisível ao olho comum. Essa desordem é aquela que, regra geral, se aloja na interioridade do sujeito, na qual provoca grandes ruínas. Muitas vezes, a única maneira de perceber essa desordem interna do sujeito moderno se dá por meio da observação, ou análise de seus diversos tipos de comportamento. Sendo assim, pode-se dizer que da vida civilizada pode até vim os prazeres e demais comodidades que tornam fascinantes e atrativas a vida moderna, como de fato vem, mas atrelado a tudo isso, vem também o sofrimento, a decepção, a tristeza, o lamento, a angústia e uma série de coisas que nem todos podem ver, embora quase todos possam experimentar.  Nesse sentido Bauman diz que “Os prazeres da vida civilizada, e Freud insiste nisso, vem num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião”. [6] Na civilização – pode-se dizer – os contrários sempre estão em harmonia. Talvez essa seja a harmonia mais perfeita de toda a civilização.
A busca de prazer parece ser algo que a modernidade tomou dos sujeitos para si, para depois dar a esses mesmo sujeitos sob certas condições. Entretanto, a busca do prazer tem como dependência básica a liberdade do próprio sujeito. Desse modo, a busca de prazeres se torna uma espécie de controvérsia na modernidade, dado que essa busca requer algo que a própria modernidade, sem cessar, tolhe continuamente no sujeito. Parece que a única maneira de fugir dessas implicâncias da modernidade é rompendo com ela. O rompimento, nesse sentido, seria um meio do indivíduo se libertar do fardo que pesa nos seus ombros e se tornar, portanto, mais livre. Nessa perspectiva, Bauman alude que

Dentro da estrutura de uma civilização concentrada na segurança, mais liberdade significa menos mal-estar. Dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, mais ordem significa mais mal estar. [7]

Fica claro, portanto, que liberdade e ordem passam a ser dois contrastes na modernidade de tal modo que dado o advento de um tem-se necessariamente o despojamento do outro. Com a liberdade alcançada, o sujeito pode (não necessariamente) voltar-se para a procura do prazer, entretanto não da maneira como a modernidade quer, mas conforme a sua própria vontade lhe aprouver.  Isso porque naturalmente o indivíduo distende com muita freqüência para aquilo que na vida é prazeroso. Com a tendência para o prazer o indivíduo se afasta da aflição, que muitas vezes origina-se do excesso de ordem. Entretanto, a cautela e a prudência são coisas que – no sujeito que se volta para a procura do prazer – não podem faltar, de modo algum. Cumpre aqui ressaltar que do outro lado do prazer está a dor. Essa dor que se oculta sem deixar de existir, é justamente aquilo que a modernidade vai esconder do sujeito. E esse é, sem dúvida, um grande problema que decorre da modernidade e que se coloca sobre o indivíduo dito moderno.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa – que teve como pretensão refletir sobre o sujeito moderno – buscou demonstrar como e de que forma a modernidade provocou grandes transformações no cenário da vida cotidiana. Demonstrou-se que – dado o advento da era moderna – uma série de eventos incidiram sobre o sujeito comprometendo até mesmo algo de natural e intrínseco a esses mesmos sujeitos como, por exemplo, a sua liberdade, perdida parcialmente. Essa perda de liberdade se deu, sobretudo, pelo fato de que a modernidade, voltada para a ordem, procurou eliminar tudo o que pudesse ser uma forma de ameaça à desejada ordem. Nesse sentido, percebeu-se que é desse excesso de ordem projetado pela modernidade que resulta alguns dos mal-estares do sujeito, e que modifica consideravelmente o seu comportamento.
Percebeu-se ainda que na modernidade, uma das grandes dificuldades do sujeito diz respeito ao fato dele não se fixar em um determinado lugar e por muito tempo. Isso porque na modernidade, tudo é feito para ser derrubado num momento posterior à sua construção. É dessa forma que a vida humana na era moderna vai se assemelhar ao estilo de vida nômade. Na modernidade não há, fixação definitiva do sujeito em um determinado lugar. Tudo é temporário.

REFERÊNCIA

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.

 

[1] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. P. 7.
[2] Id. Ibidem, P. 8.
[3] Id. Ibidem, P. 8
[4] Id. Ibidem, P. 8
[5] Id. Ibidem, P.8-9.
[6] Id. Ibidem, P. 8
[7] Id. Ibidem, P. 9


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