domingo, 21 de novembro de 2010

FICHAMENTO PARCIAL DO LIVRO “O MAL-ESTAR DA PÓS-MODERNIDADE” DE ZYGMUNT BAUMAN


                     
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998.

INTRODUÇÃO

O MAL-ESTAR – MODERNO E PÓS-MODERNO

- Só a sociedade moderna pensou em si mesma como uma atividade da “cultura” ou da “civilização” e agiu sobre alto conhecimento com os resultados que Freud passou a estudar; a expressão “civilização moderna” é por essa razão, um pleonasmo. (P. 7).
- Você ganha uma coisa, mas, habitualmente, perde em troca alguma coisa: partiu daí a mensagem de Freud. Assim como “cultura” ou “civilização”, modernidade é mais ou menos beleza [...], limpeza [...], e ordem (“ordem é uma espécie de compulsão à repetição que [...] decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão). (P. 7-8).
- A beleza (isto é, tudo o que o sublime prazer dá harmonia e perfeição da forma), a pureza e a ordem são ganhos que não devem ser desprezados e que, certamente, se abandonados, irão provocar indignação, resistência e lamentação. Mas tampouco devem ser obtidos sem o pagamento de um alto preço. (P. 8).
- Nada predispõe “naturalmente” os seres humanos a procurar ou preservar a beleza, conservar-se limpo e observar a rotina chamada ordem. (se eles parecem, aqui e ali, apresentar tal “instinto” deve ser uma inclinação criada e adquirida, ensinada, o sinal mais certo de uma civilização em atividade. (P. 8).
- Os seres humanos precisam ser obrigados a respeitar e apreciar a harmonia, a limpeza e a ordem. Sua liberdade de agir sobre seus próprios impulsos deve ser preparada. A coerção é dolorosa: a defesa contra o sofrimento gera seus próprios sofrimentos. (P. 8).
- “A civilização se constrói sobre uma renuncia ao extinto”. Especialmente – assim Freud nos diz – a civilização [...] “impõem grandes sacrifícios” à sexualidade e agressividade do homem. (P. 8).
- “O anseio de liberdade, portanto, é dirigido contra formas e exigências particulares da civilização ou contra a civilização como num todo. (P. 8).
- Os prazeres da vida civilizada, e Freud insiste nisso, vem num pacote fechado com os sofrimentos, a satisfação com o mal-estar, a submissão com a rebelião. (P. 8).
- A civilização – a ordem imposta a humanidade naturalmente desordenada – é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar. (p. 8).
- “O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança”. (P. 8).
- Dessa ordem que era o orgulho da modernidade e a pedra angular de todas as suas outras realizações [...] Freud falou em termos de “compulsão”, “regulação”, “supressão” ou “renuncia fechada”. Esses mal-estares que eram a marca registrada da modernidade resultaram do “excesso de ordem” e sua inseparável companheira – a escassez de liberdade. (P. 8-9).
- Dentro da estrutura de uma civilização concentrada na segurança, mais liberdade significa menos mal-estar. Dentro da estrutura de uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, mais ordem significa mais mal estar. (P. 9).
- Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana: é o valor pelo qual todos os outros valores vieram a ser avaliados e a referência pela qual a sabedoria das coisas acerca de todas as normas e resoluções supra-individuais devem ser medidas. (P. 9).
- A liberdade individual, outrora uma responsabilidade e um problema para todos os edificadores da ordem, tornou-se o maior dos predicados e recursos na perpétua auto-criação do universo humano. (P. 9).
- Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da liberdade individual. (P. 10).
- Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma liberdade individual pequena demais. (P. 10).
- Qualquer valor só é um valor (como Georg Simmel, há muito, observou) graças à perda de outros valores, que se tem de sofrer a fim de obtê-lo.

CAP. I
O SONHO DA PUREZA

- Os grandes crimes, frequentemente, partem de grandes idéias. (P. 13).
- Nos primeiros anos da idade moderna, como Michel Foucault nos lembrou, os loucos eram arrebanhados pelas autoridades citadinas, amontoados dentro de Narrenschiffen (“naus dos loucos”) e jogados ao mar; os loucos representavam “uma obscura desordem, um caos movediço (...) que se opõe a estabilidade adulta e luminosa da mente”, e o mar representava a água, que “leva deste mundo, mas faz mais: purifica”. (P. 13).
- A intervenção humana decididamente não suja a natureza, e a torna imunda: ela insere na natureza a própria distinção entre pureza e imundície, cria a própria possibilidade de uma determinada parte do mundo ser “limpa” ou “suja”. (P. 14).
- A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às coisa seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorrem serem aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente” por sua livre vontade. (P. 14).
- O oposto da pureza [...] são as coisas fora do lugar. (P. 14).
- Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, mas, tão somente sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. (P. 14).
- As coisas que são sujas num contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar – e vice-versa. Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeição, restituídos ao monte dos sapatos, eles recuperam sua prístina e pureza. (p. 14).
- Ordem significa um meio regular e estável para os nossos atos; um mundo em que as probabilidades dos acontecimentos não estejam distribuídas ao acaso, mas arrumadas numa hierarquia estrita [...]. (P. 15).
- A sujeira, sugeriu Douglas (Mary Douglas) “é essencialmente desordem. Não há nenhuma coisa que seja sujeira absoluta. Ela existe ao olhar do observador. (...) A sujeira transgride a ordem. Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente. [...] se o desasseio é coisa inapropriada, devemos atacá-lo através da ordem. O desasseio ou a sujeira é o que não deve ser incluído se um padrão precisa ser mantido. (P. 16).
- Conforme a análise de Mary Douglas, o interesse pela pureza e a obsessão com a luta contra a sujeira emergem como características universais dos seres humanos: os modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para outra, de uma cultura para outra – mas cada época e cada cultura tem um certo modelo de pureza e um certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes às disparidades. (P. 16).
- O criador da sociologia fenomenológica, Alfred Schütz, fez nos conscientes das características da vida humana que parecem obvias no momento em que são ressaltadas: de que, se nós, humanos, podemos “achar nossas posições dentro de nosso ambiente natural e sociocultural e chegamos a um acordo sobre isso” é graças ao fato de que esse ambiente foi antes “pré-selecionado e pré-interpretado (...) por uma serie de constructos de senso comum da realidade da vida diária”. (P. 17).
- Nenhum de nós pode construir o mundo das significações e sentidos a partir do nada: cada um ingressa num mundo “pré-fabricado”, em que certas coisas são importantes e outras não o são; em que as conveniências estabelecidas trazem certas coisas para a luz e deixam outras na sombra. (P. 17).
- “Só posso compreender os atos de outra pessoa”, diz Schütz, “se puder imaginar que eu mesmo praticaria atos análogos caso tivesse na mesma situação, regulada pelos mesmos motivos de por que, ou orientadas pelos mesmos motivos de para que [...]. (P. 18).
- [...] a chegada de um estranho tem o impacto de um terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições do local – e, desse modo, “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado. Ele “tem de” cometer esse ato, perigoso e deplorável porque não tem nenhum status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe “natural” [...]. (P. 19).
- Se a “sujeira” é um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e a sujeira automática, autolocomotora e autocondutora é um elemento que desafia a própria possibilidade de esforços eficientes, então, o estranho é a verdadeira síntese desta ultima. (P. 19).
- [...] o cuidado com a ordem significou a introdução de uma nova ordem, ainda por cima, artificial – constituindo, por assim dizer, um novo começo. De fato, PODE-SE DEFINIR A MODERNIDADE COMO A ÉPOCA, OU O ESTILO DE VIDA, EM QUE A COLOCAÇÃO EM ORDEM DEPENDE DO DESMANTELAMENTO DA ORDEM “TRADICIONAL”, HERDADA E RECEBIDA; EM QUE “SER” SIGNIFICA UM NOVO COMEÇO PERMANENTE. (P. 20).
- Cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que precisa ser varrida. (P. 20).
- O cuidado com a pureza concentra-se não tanto no combate à “sujeira primária” quanta na luta contra a “metassujeira” – contra afrouxar ou negligenciar totalmente o esforço de manter as coisas como são [...] (P. 20).
- “Vizinhos do lado” inteiramente familiares e sem nenhum problema podem da noite para o dia converter-se em estranhos aterrorizantes, desde que uma nova ordem se idealiza [...]. (P. 21).
- Quase todas as fantasias modernas de um “mundo bom” foram em tudo profundamente antimodernas, visto que visualizaram o fim da história comprometida com um processo de mudança. (P. 21).
- Uma vez que o critério da pureza é aptidão de participar do jogo consumista, os deixados de fora como um “problema”, como a “sujeira” que precisa ser removida, são consumidores falhos – pessoas incapacitadas de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam recursos requeridos, pessoas incapazes de ser “indivíduos livres” conforme o senso de “liberdade” definido em função do poder de escolha do consumidor. São eles os novos “impuros” que não se ajustam ao novo esquema de pureza. Encarados a partir da nova perspectiva do mercado consumidor, eles são redundantes – verdadeiramente “objetos fora do lugar”. (P. 24).
- Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista, [...] impedem a entrada dos consumidores falhos à suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades [...]. (P. 24).
- A modernidade viveu num estado permanente de guerra à tradição, legitimada pelo anseio de coletivizar o destino humano num plano mais alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar sua intrínseca irreverência contra os seus próprios princípios. (P. 26).
- A pós-modernidade, por outro lado, vive num estado de permanente pressão para se despojar de toda interferência coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatiza. (P. 26).
- A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolucionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos – assaltantes, gatunos, ladrões de carros [...]. (P. 26).
- A busca da pureza moderna expressou-se diariamente com a ação punitiva contra as classes perigosas; a busca da pureza pós-moderna expressa-se diariamente com a ação punitiva contra os moradores das ruas pobres e das áreas urbanas proibidas, os vagabundos e indolentes. (P. 26).

                                                                     CAP. II
A CRIAÇÃO E ANULAÇÃO DOS ESTRANHOS

- todas as sociedades produzem seus estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranho, e os produz de sua própria maneira, inimitável. (P. 27).
- se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético desse do mundo [...] cada sociedade produz esses estranhos. (P. 27).
- [...] uma vez que a humanidade tolera mal todo tempo de reclusão, os seres humanos que transgridem os limites se convertem em estranhos – cada um deve ter motivos para temer a bota de cano alto feita para pisar no pó a face dos estranhos, para espremer o estranho do humano e manter aqueles ainda não pisados [...] (P. 27-28).
- Botas de cano alto fazem parte de uniformes. [...] Em algum momento de nosso século se tornou comum a compreensão de que os homens uniformizados devem ser mais temidos. (P. 28).
- Envergando uniformes, os homens se tornam esse poder em ação; envergando botas de cano alto, eles pisam, e pisam em ordem, em nome do estado. (P. 28).
- O estado que vestiu homens de uniforme, de modo que estes pudessem ser reconhecidos e instruídos para pisar, e antecipadamente absolvidos da culpa de pisar, foi o estado que se encarou como a fonte, o defensor e a única garantia da vida ordeira: a ordem que protege o dique do caos. (P. 28).
- Foi à visão da ordem que os estranhos modernos não se ajustaram. (P. 28).
- Quando se traçam linhas divisórias e se separa o assim dividido, tudo o que borra as linhas e atravessa as divisões solapa esse trabalho e destroça-lhe os produtos. (P. 28).
- Os estranhos exalaram incerteza onde a certeza e a clareza deviam ter imperado. (P. 28).
- Constituir a ordem foi uma guerra de atrito empreendida contra os estranhos e o indiferente. (P. 28).
- nessa guerra [...] duas estratégias alternativas foram inteiramente desenvolvidas. Uma era antropofágica: aniquilar os estranhos devorando-os e depois, metabolicamente, transformando-os num tecido indistinguível do que já havia. [...] A outra estratégia era antropoêmica: vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro. (P. 28-29).
- A expressão mais comum das duas estratégias foi o notório entrechoque entre as versões liberal e racista-nacionalista. (P. 29).
- As pessoas são diferentes, dá a entender o projeto liberal, mas diferentes por causa da diversidade das tradições locais e particularistas em que elas crescem e amadurecem. São produtos da educação, criaturas da cultura e, por isso, flexíveis e dóceis a serem transformadas. (P. 29).
- Não é assim, objetou a opinião racista-nacionalista. A reconstrução cultural tem limites que nenhum esforço poderia transcender. Certas pessoas nunca serão convertidas em alguma coisa mais do que são. Estão, por assim dizer, fora do alcance do reparo. Não se pode livrá-la de seus defeitos: se pode deixá-las livres delas próprias [...]. (P. 29).
- Na sociedade moderna, e sob a égide do estado moderno, a aniquilação cultural e física dos estranhos e do diferente foi uma destruição criativa, demolindo, mas construindo ao mesmo tempo, mutilando, mas corrigindo [...] (P. 29).
- [...] onde quer que a planejada ordem de constituição esteja em andamento, certos habitantes do território a ser ordeiramente feito de maneira nova convertem-se em estranhos que precisam ser eliminados. (P. 30).
- Os estranhos eram, por definição, uma anomalia a ser retificada. Sua presença a priori era definida como temporária [...]. (P. 30).
Do desencaixe a navegação
- O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade herdada. Não tomou, porem, uma firme posição contra a identidade [...] Só transformou a identidade, que era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma tarefa individual e da responsabilidade do indivíduo. (P. 30).
- A identidade devia ser erigida sistematicamente, de degrau em degrau, de tijolo em tijolo, seguindo um esquema concluído antes de iniciado o trabalho. A construção requeria uma clara percepção da forma final [...] e a visão através das conseqüências de cada movimento. (P. 31).
- Havia, assim, um vínculo firme e irrevogável entre a ordem social como projeto e a vida individual como projeto, sendo a ultima impensável sem a primeira. (P. 31).
- Na sociedade moderna, que comprometeu seus integrantes principalmente com os papeis de produtores e soldados, o ajustamento e a adaptação indicavam apenas um único caminho: era a volúvel escolha individual que precisava inventariar sua vida [...]. (P. 32).
- Os projetos de vida individuais não encontram nenhum terreno estável em que acomodem uma âncora, e os esforços de constituição de identidade individual não podem retificar as conseqüências do desencaixe [...] (P. 32).
- A imagem do mundo diariamente gerada pelas preocupações da vida é destituída da genuína ou suposta solidez e continuidade que costumavam ser a marca registrada das estruturas modernas. (P. 32).
- O mundo pós-moderno está-se preparando para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. (P. 32).
Dimensões da incerteza presente
- [...] a incerteza radical a propósito dos mundos material e social que habitamos e dos nossos métodos de atividade política dentro deles (...) é o que a indústria da imagem nos oferece (...). (P. 36).
- [...] a mensagem hoje carregada de grande poder de persuasão pelos mais ubiquamente eficazes meios de comunicação cultural [...] é uma mensagem da indeterminação e maleabilidade do mundo: neste mundo, tudo pode acontecer e tudo pode ser feito, mas nada pode ser feito uma vez por todas – e o que quer que aconteça chega sem se anunciar e vai-se embora sem aviso. (P. 36).
- [...] há pouca coisa, no mundo, que se possa considerar sólida e digna de confiança [...] (P. 36).
- [...] a própria memória é como uma fita de vídeo, sempre pronta a ser apagada para receber novas imagens [...]. (P. 36-37).
- Viver sob condições de esmagadora e auto-eternizante incerteza é uma experiência inteiramente distinta da de uma vida subordinada à tarefa de construir a identidade, e vivida num mundo voltado para a constituição da ordem. (P. 37).
 - Os estranhos de hoje são subprodutos, mas também os meios de produção no incessante, porque jamais conclusivo, processo de construção da identidade. (P. 37).
Liberdade, incerteza e liberdade da incerteza
- O que faz certas pessoas estranhas e, por isso, irritantes, enervantes, desconcertantes e, sob outros aspectos, “um problema”, é – vamos repetir – sua tendência a obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. (P. 37).
- Em diferentes épocas e em diferentes situações sociais, são diferentes as fronteiras que devem ser vistas mais claramente do que outras. (P. 38).
- [...] é característica muito difundida dos homens e mulheres contemporâneos, no nosso tipo de sociedade, eles viverem permanentemente com o “problema da identidade” não resolvido. (P. 38).
- Eles sofrem, pode-se dizer, de uma crônica falta de recursos com os quais pudesse construir uma identidade verdadeiramente sólida e duradora, ancorá-la e suspender-lhe a deriva. (P. 38).
- [...] a própria pessoa fazer uma identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la “pela vida”, revela mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as circunstâncias do seu itinerário de vida [...] (P. 38).
- [...] isso, pode-se dizer, é um traço universal dos nossos tempos e, portanto, a angústia relacionada com os problemas da identidade e com a disposição para se preocupar com toda coisa “estranha” [...] é potencialmente universal. (P. 38).
- [...] quanto menos as pessoas controlem e possam controlar as suas vidas, bem como as fecundas identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente tentarão desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma envolvente, sufocante, absorvente e informe substancia. (P. 40).
- Na cidade pós-moderna, os estranhos significam uma coisa aos olhos daqueles para quem a “área inútil” [...] significa “não vou entrar” e outras coisas aos olhos daqueles para quem “inútil” quer dizer “não posso sair”. (P. 40-41).
- Os estranhos são pessoas que você paga pelos sérvios que elas prestam e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que já não tragam prazer. (P. 41).
- A viscosidade dos estranhos [...] é reflexo de sua própria falta de poder. É essa sua carência de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrível força dos estranhos. (P.42).
- As idéias, e as palavras que as transportam, mudam de significado quanto mais longe elas viajam. (P. 42).
A teoria da diferença, ou o sinuoso caminho para a humanidade partilhada
- A viscosidade dos estranhos e a política de exclusão originam-se da lógica da polarização [...] para a oprimida a que foram negados os recursos de construção da identidade e, assim [...] todos os instrumentos da cidadania. (P. 48).
- Não é meramente renda e riqueza, expectativa de vida e condições de vida, mas também – e talvez mais fundamentalmente – o direito à individualidade, que está sendo crescentemente polarizado. (P. 48).

CAP. V
ARRIVISTAS E PÁRIAS: OS HERÓIS DA MODERNIDADE

- Socialmente a modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões – que acenam, fascinam ou incitam [...] E sempre prometendo que o dia seguinte será melhor que o momento atual. E sempre mantendo a promessa viva [...] sempre mesclando a esperança de alcançar a terra prometida com a culpa de não caminhar suficientemente depressa [...] A culpa protege a esperança da frustração; a esperança cuida para que a culpa nunca estanque [...]. (P. 91).
- Psiquicamente, a modernidade trata da identidade [...] Como o restante dos padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr esbaforidamente para alcançá-la. (P. 91).
- Precipitar-se para a frente, em direção à identidade [...] assemelha-se a recuar da defeituosa e ilegítima realidade do presente. (P. 91).
- Verdadeiramente moderna não e a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de ficar contente. (P. 91).
- “Hoje” é meramente uma incipiente premonição de amanhã [...] O que é é cancelado de antemão por o que virá. (P. 92).
- [...] a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa está em movimento. Não se resolve necessariamente está em movimento, como não se resolver ser moderno. (P. 92).
- Nesse mundo, todos os habitantes são nômades, mas nômades que perambulam a fim de se fixar. (P. 92).
- [...] o auto-engano da existência que quer esquecer o seu passado nômade; mostra que a casa é somente um ponto de chegada, e uma chegada prenhe de uma nova partida. (P. 92).
- Onde quer que cheguem e desejem ardentemente permanecer, os nômades descobrem que são arrivista. Arrivista, alguém já no lugar, mas não inteiramente do lugar, um aspirante a residente sem permissão de residência. (p. 92).
- A permanência dos arrivistas deve ser declarada temporária, de modo que a permanecia de todos os outros possa parecer eterna. (P. 92-93).
- A única maneira porque podem fixar o tempo que se recusa a permanecer imóvel é marcar o espaço e proteger as marcas para que não sejam apagadas ou deslocadas. Pelo menos, tal é a sua desesperada esperança. (p. 93).
- A autonomia do homem transformou-se na tirania das possibilidades. (Hannah Arendt). (P. 93).
- Definições são inatas; identidades são constituídas. As definições informam a uma pessoa quem ela é, as identidades, atraem-na pelo que ela ainda não é, mas inda pode tornar-se. (P. 94).
- Eles perseguiam identidades porque, desde o principio, as definições lhes aviam sido negadas. (P. 94).
- A identidade significa recusar ser o que os outros querem que se seja (Max Frisch), é recusado à pessoa o direito de recusar. (P. 96).
- [...] a revolução moderna terminou em parricídio – poeticamente intuído por Freud, no seu desesperado esforço para discernir o mistério da cultura. Os mais brilhantes e mais fiéis filhos da modernidade não podiam expressar sua lealdade senão se tornando os seus coveiros. Quanto mais eles se dedicavam à construção do artifício que a modernidade se pôs a erigir, havendo primeiro destronado e legalmente incapacitado a natureza – mais solapavam o alicerce do prédio. [...] Seus filhos estavam geneticamente determinados a ser seus detratores e – em ultima análise – seu pelotão de demolição. (p. 98).
- Pode-se seguramente definir a modernidade como uma forma de vida marcada por tal desarticulação, como uma condição social sob a qual a cultura não pode servir à realidade senão minando-a. (p. 99).
- No sistema de castas hindu, o pária era um membro da casta mais baixa, ou de nenhuma casta. (P. 99).
- A modernidade proclamou que nenhuma ordem era intocável, visto que todas as ordens intocáveis deviam ser substituídas por uma ordem artificial, em que são construídos caminhos que levam da ordem mais baixa ao topo e, portanto, ninguém faz parte de um lugar eternamente. A modernidade foi assim a esperança do pária. Mas o pária podia deixar de ser pária somente ao se tornar [...] um arrivista. E o arrivista, por nunca haver apagado a mácula da sua origem, vivia sob a constante ameaça de deportação de volta à terra de que tentou escapar. (p. 99-100).
- nem por um momento o herói deixou de ser uma vítima potencial. Herói hoje, vítima amanhã – o muro divisório entre as duas situações era muito estreito. Estar em movimento significa não fazer parte de nenhum lugar. E não fazer parte de nenhum lugar significa não contar com a proteção de ninguém: de fato, a quintessência da existência do pária era não poder contar com a proteção de ninguém. Quanto mais depressa se corre, mais rápido se permanece no lugar. (P. 100).
- A viagem não proporcionou redenção ao arrivista. (P. 100).
- A sociedade “principalmente coordenada”, talvez racionalmente projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a construir. (p. 102).
- [...] o gosto moderno pela perfeição projetada condensou a, sob outros aspectos, difusa heterofobia e, repetidamente, canalizou-a, à maneira de Stalin ou de Hitler, em direção à saída genocida. (P. 103).
- [...] o principal conflito do cenário moderno surgiu da inerente ambivalência das pressões assimiladoras, que incitavam em direção a apagar as diferenças em nome de um padrão humano universal [...]. (P. 103).
- Não há certeza [...] de que no universo povoado por comunidades não restará nenhum espaço para o pária. O que parece mais plausível, contudo, é que a via de fuga do arrivista ao status de pária será fechada. (P. 103).

CAP. VI
TURISTAS E VAGABUNDOS: OS HERÓIS E AS VITIMAS DA PÓS-MODERNIDADE
- As teorias tendem a ser incipientes claros e bem talhados feitos para receber os conteúdos limosos e lamacentos da experiência. Mas para conservá-los aqui, suas paredes precisam ser duras; tendem também a ser opaca. É difícil ver os conteúdos da experiência através das paredes da teoria. Muitas vezes se tem de furar as paredes – “desconstruía-las”, “decompô-las” – para ver o que elas escondem. (P. 106).
- Em seu papel tradicional de purificadores e legisladores do senso comum, os filósofos deviam cortar e separar suas práticas das práticas do homem comum, de modo que pudessem ser colocadas umas contra as outras. Dessa operação, as práticas do não-filósofos emergiam, é claro, como não-filosóficas. (P. 108).
- [...] apenas sob certas condições [...] as coisas realmente se tornam evidentes. (É evidente para nós, por exemplo, que já os homens de Cro-Magnon e os de Neanderthais “deviam ter tido uma cultura”, mas só na segunda metade do século XVIII pode o conceito de cultura ser cunhado, e eles dificilmente seriam os homens de Cro-Magnon e os Neanderthais que foram, se estivesse conscientes de que tinham uma cultura.). (P. 109).
- [...] os homens e mulheres modernos viveram num tempo-espaço com estrutura, um tempo-espaço rijo, sólido e durável, mas também um duro recipiente em que os atos humanos podiam achar-se sensíveis e seguros. Nesse mundo estruturado, uma pessoa podia perder-se, mas também podia achar seu caminho. (P. 110).
- Sob tais circunstancias, a liberdade era de fato a necessidade conhecida. (P. 110).
- A estrutura estava em seu lugar antes de qualquer proeza humana começar, e durava o tempo suficiente, inabalável e inalterada, para levar a cabo a proeza. Ela antecedeu toda realização humana, mas também a realização possível [...]. (p. 111).
- O que pensamos que o passado tinha é o que sabemos que não temos. (P. 111).
- E o que sabemos que não temos é a facilidade de retirar a estrutura do mundo da ação dos seres humanos; a solidez firme, de pedra, do mundo exterior à flexibilidade da vontade humana. Não que o mundo se tenha tornado subitamente submisso e obediente ao desejo humano [...]. (P. 111-112).
- A ação humana não se torna menos frágil e errática: é o mundo em que ela tenta inscrever-se e pelo qual procura orientar-se que se torna mais assim. (P. 112).
- Como pode alguém investir numa realização de vida inteira, se hoje os valores são obrigados a se desvaloriza, e a manhã a se dilatar? (P. 112).
- O significado da identidade [...] se refere tanto a pessoas como coisas. O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelos produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalho de construção pode mostrar-se inútil. (P. 112).
- No jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de mudar no curso da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada jogo [...]. (P. 113).
- [...] a determinação de viver um dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências menores, se tornaram os princípios normativos de toda estratégia de vida racional. (P. 113).
- Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a se “fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. (P. 113).
- [...] a dificuldade já não é descobrir, inventar [...] uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo. (P. 113).
- O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe. (P. 113).
- Os turistas se tornam viajantes e colocam os sonhos da nostalgia acima das realidades da casa [...]. (P. 117).
- Nem todos os viajantes estão em movimento por preferirem ficar em movimento a estar em seu lugar. [...] Se estão em movimento, é porque foram impelidos por traz – tendo sido, primeiramente, desenraizados por uma força demasiadamente poderosa, e muitas vezes demasiadamente misteriosa [...]. (P. 117).
- Para eles, estar livre significa não ter de viajar de um lado para o outro. [...] São esses os vagabundos, luas escuras que refletem o brilho de sóis brilhante, os mutantes da evolução pós-moderna [...]. Os vagabundos são o resto do mundo que se dedicaram aos serviços dos turistas. (P. 117).
- Os vagabundos, porem, sabem que se não ficarão por muito tempo, por mais intensamente que o desejem, uma vez que em lugar nenhum que parem são bem-vindos: se os turistas se movem porque acham o mundo irresistivelmente atrativo, os vagabundos se movem porque acham o mundo insuportavelmente inóspito. (P. 117-118).
- Os turistas viajam porque querem; os vagabundos, porque não têm nenhuma outra escolha. Os vagabundo, pode-se dizer, são turistas involuntários. (P. 118).
- [...] turistas e vagabundos são as metáforas da vida contemporânea. Uma pessoa pode ser um turista ou um vagabundo sem jamais viajar fisicamente para muito longe [...]. (P. 118).
- [...] em nossa sociedade pós-moderna, estamos todo [...] em movimento; nenhum de nós pode estar certo de que adquiriu o direito a algum lugar uma vez por todas, e ninguém acha que sua permanecia num lugar, para sempre, é uma perspectiva provável. (P. 118).
- [...] aqui termina o que há de comum na nossa situação e começam as diferenças. (P. 118).
- Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna. (P. 118).


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